“Afrofuturismo” vs “Africanfuturism”

Por que foi necessária a criação de outro termo sobre a mesma coisa?

Preliminares

Você que venha a ler este texto talvez mal saiba o que vem a ser “Afrofuturismo”. Talvez para você seja só mais um nome engraçado e chamativo sobre coisa alguma… e de certa forma é. De qualquer forma, sugiro antes que leia este meu texto – “Afrofuturismo: Ensaios sobre narrativas, definições, mitologia e heroísmo” – e/ou assista a esta minha palestra: TEDx Mauá – O que é o Afrofuturismo – e depois retorne aqui. Para que não seja preciso repetir conceitos e possamos seguir direto ao cerne do assunto.

TEDx sobre Afrofuturismo. Assista antes de ler este texto.

Introdução

Certo. Por volta de novembro de 2019 começou a me chamar a atenção uma hashtag denominada “africanfuturism”. Ué, o tal Afrofuturismo não é suficiente?

Pelo visto, há algo errado.

A escritora PhD americana de origem nigeriana premiada mundialmente Nnedi Okorafor é quem cunhou o termo “africanfuturism” em algum lugar de 2019. Após ser questionada sobre, após ter sido acusada de redundância, uma vez que já existe o termo “Afrofuturismo” desde 1994, ela então se deu ao trabalho de postar em seu blog pessoal o seguinte texto: “Africanfuturism Defined”. Quem souber inglês e tiver interesse no assunto, vale a pena ler.

Após a escritora cunhar o termo, venho percebido um certo crescimento na hashtag “africanfuturism” entre outros escritores e escritoras, especialmente os nascidos no Continente.

O cerne da questão

Vamos analisar o que foi dito pela autora Okorafor. Ela abre seu texto enumerando as razões por ter cunhado o termo, que são as seguintes (tradução livre):

“1. O termo afrofuturismo tinha várias definições e algumas das mais importantes não descreviam o que eu estava fazendo; 2. Eu estava sendo chamada dessa palavra [uma afrofuturista], concordando ou não (não importa o quanto eu resistisse publicamente) e, como a maioria das definições estava errada, meu trabalho estava sendo lido incorretamente; 3. Eu precisava recuperar o controle de como estava sendo definido.”

Até hoje tenho muita curiosidade de perguntar à autora que definições sobre Afrofuturismo seriam essas…. Porém, observando os atuais desdobramentos do termo “Afrofuturismo” em solo brasileiro, creio que tenho as minhas respostas.

Minha breve visão sobre os desdobramentos do “Afrofuturismo” no Brasil

Na minha percepção, o “Afrofuturismo” vem sendo entendido simplesmente como…. “empoderamento negro” e só. Seja lá o que isso signifique. Ou somente: “negros na ficção científica”. Ou, nem isso: “pessoas pretas vestindo roupas prateadas”. Ou sei lá.

Parece-me que, no campo da atual militância negra, focada na internet, “Afrofuturismo” vira mais uma palavra pomposa para falarmos sobre a mesma coisa.

No entanto, busco sempre enxergar o Afrofuturismo mais como gênero cultural concreto do que apenas um rótulo espetaculoso sobre coisa nenhuma.

Só que o Afrofuturismo hoje vem sendo entendido e desenvolvido em terras brasileiras simplesmente como um rótulo espetaculoso sobre coisa nenhuma. Dessa forma, entendo perfeitamente que uma escritora do porte da Okorafor queira se distanciar de tal rótulo e exija o direito de ter seu trabalho lido corretamente.

O “Africanfuturism” da Nnedi Okorafor

Nnedimma Nkemdili Okorafor é uma autora que todos vocês devem conhecer e ler, independentemente se se interessam ou não por esses rótulos espetaculosos sobre coisa alguma. Independentemente de ser uma pessoa negra ou não. Leiam a literatura pela literatura. E a literatura da Nnedi Okorafor é espetacular, uma das melhores escritoras vivas. Ponto.

Certo. Gostaria de destacar um enxerto fundamental do texto da Nnedi sobre “Africanfuturism”:

“O Africanfuturism é semelhante ao “Afrofuturismo”, da mesma forma que os negros no Continente e na diáspora negra estão todos conectados por sangue, espírito, história e futuro. A diferença é que o “Africanfuturism” está especificamente e mais diretamente enraizado na cultura, história, mitologia e ponto de vista da África, que se ramifica na diáspora negra, e não privilegia ou centraliza o Ocidente.”

Isso é interessante. Pois não é da mesma forma que enxergo o Afrofuturismo? Na minha concepção, para que o Afrofuturismo possa se justificar enquanto gênero, deve enfatizar e privilegiar suas raízes históricas, mitológicas e culturais africanas. Falei isso em textos passados, falo sempre isso nas minhas oficinas. Então….?

O que “deu ruim” com o Afrofuturismo, a ponto de uma escritora renomada sentir a necessidade de criar outro termo para definir o próprio trabalho?

Outra passagem crucial do texto, que talvez resuma tudo:

“Afrofuturismo: Wakanda constrói seu primeiro posto avançado em Oakland, CA, EUA. 

Africanfuturism: Wakanda constrói seu primeiro posto avançado em um país africano vizinho.”

Não há nem com o que argumentar sobre essa afirmação. A Nnedi Okorafor está 100% correta.

Problematizando o “Afrofuturismo”

O rótulo “Afrofuturismo” foi cunhado por um homem branco, Mark Dery, ou pelo menos ele quem leva o crédito até hoje. Isso incomoda a Okorafor, assim como também me incomoda. Porém, eu entendo que o movimento cultural afrofuturista foi criado por artistas negros, afro-americanos, do quilate de Sun Ra e George Clinton, sendo apenas posteriormente rotulado. Ou seja, é uma classificação tardia (1994) em cima do que pessoas negras já vinham fazendo desde os anos 1960.

Porém….

Não concordo, por exemplo, quando a brilhante escritora Octavia Butler é rotulada como “afrofuturista”. A obra de Butler foi associada ao Afrofuturismo por Mark Dery. Alguns críticos, contudo, notam que, embora os protagonistas de Butler sejam de ascendência africana, as comunidades onde vivem são multiétnicas e, algumas vezes, multi-espécie. Escritores como Kilgore e Samantrai explicam que, embora Butler ofereça “uma sensibilidade afrocêntrica no cerne de suas narrativas”, sua “insistência no hibridismo além do ponto de desconforto” excede os princípios tanto do nacionalismo cultural negro, quanto do pluralismo liberal “dominado por brancos”.

Na minha humilde visão, a obra de Octavia Butler está muito além desse rótulo, ao mesmo tempo em que tal rótulo é insuficiente para descrever a magnitude de sua obra. Butler foi uma das maiores escritoras de ficção científica. Ponto.

Qualquer pessoa negra que escreve fantasia ou ficção científica é afrofuturista? Isso é suficiente para justificar um rótulo? Não seria mais fácil chamar simplesmente de… ficção científica?

Foi pensando em definir limites para o Afrofuturismo que criei as quatro características fundamentais das narrativas afrofuturistas, texto que criei no primeiro semestre do ano passado, a partir de um vídeo que fizemos sobre o assunto. Cliquem nos links para maiores detalhes. De antemão, destaco:

– Protagonismo de personagens negros

– Narrativa negra de ficção especulativa

– Afrocentricidade

– Autoria negra

Porém.

Quem diz lidar com Afrofuturismo hoje, acredita e/ou concorda com essas quatro características? Num cenário em que há pessoas chamando até empreendedorismo negro de afrofuturismo, essas quatro características fazem sentido? Em um mundo extremamente colonizado, é muita pretensão querer impor limites afrocêntricos ao Afrofuturismo?

Afrofuturismo vs Africanfuturism: afinal, são ou não são a mesma coisa

A partir de tudo que foi aqui apresentado… minha resposta seria: sim e não. Depende. Talvez….

Ou seja, conclusão alguma.

No final das contas, sou obrigado a admitir: não sei lidar com rótulos. Sou um mero escritor de ficção, e não um estudioso ou pesquisador de assuntos. O que pesquiso é voltado para alimentar a minha escrita literária. Tampouco me considero militante ou qualquer coisa que o valha. Minha intenção com este texto é simplesmente dividir com vocês um pouco das minhas visões sobre esse assunto.

A mim, parece que o “Africanfuturism” vem a ser o que eu achava que o “Afrofuturismo” era ou deveria ser.

Mas, o que as outras pessoas pensam sobre o assunto?

É se vestir com roupas prateadas? É imaginar pessoas negras vivas no futuro? É estética? É moda? É militância?

Pelo visto é tudo isso. E nada disso.

Me desculpem se pareci pejorativo ou sarcástico em algum momento. Não domino todas as temáticas, nem tem como eu conseguir contemplar todos os anseios e desejos de todo mundo. Sou apenas um escritor.

E, como escritor, meu interesse segue sendo um só: escrever o próximo livro de ficção. Seja lá como será rotulado….

Que todos nós possamos seguir definindo nosso passado, presente e futuro com nossas próprias mãos.

*Optei deliberadamente por não me arriscar numa tradução do termo “africanfuturism”, visto que não sou um profissional da área de tradução. Fiquei muito na dúvida se seria “africanofuturista”, mas aí teria um problema de gênero envolvida, ou se seria “africofuturista”. Como não me senti seguro em nenhuma das opções, neste texto opto por manter no original, visto também que é um termo novíssimo e que o afrofuturismo no Brasil ainda é largamente desconhecido. Os profissionais da tradução que quiserem se manifestar, fiquem à vontade, são bem vindos.

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